Eu falhei

Fernanda Nunes
4 min readDec 21, 2022

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Falhei quando disse que seria a braba das brabas, a que não deixaria passar nada. Encerraria qualquer ciclo ruim que as mulheres antecedentes a mim passaram. Seria o “no passarán” em forma humana, mas passei foi tudo.

Via mulheres que considerava autênticas e independentes lamentando ou se culpando por problemas diretamente ligados ao ser mulher e automaticamente pensava: fracas! Como se deixam levar pelo cansaço de ser mulher? Se são tão fortes, por que se deixam vencer quando o assunto é, tão exatamente, a disparidade de gênero?

Falava isso como se minha vez não fosse chegar — por que não deixaria. Demorou para eu perceber que estava acontecendo comigo no mesmo instante em que eu lamentava pela forma passiva com que outras mulheres lidavam com as diferenças.

“Sou fodaralha, ninguém precisa saber de minhas cicatrizes”, era o que pensava e dizia a mim mesmo, como se isso fosse uma parte significativa do que eu considero feminismo. Não expor os percalços de ser mulher seria uma forma de lamentar e isso, é, para mim, o último suspiro da força, meio que dizendo: tentei de tudo, agora só me resta reclamar.

Escrever (e talvez transformar em arte se você for muito de Humanas) sobre a bosta que é ser mulher no mundo simplesmente me distrai, mas de alguma forma estava associado a fraqueza. “Eu vou lá e mudo. Não tenho tempo de lamentar”.

Quando eu falo que não, não adianta, as tarefas domésticas jamais serão igualmente divididas entre homem e mulher, não estou lamentando. Estou expondo um basta ou um “not so friendly reminder”, se você é Faria Limer.

Mas sigo tentando. Reclamando ou expondo, meu não passarão é cheio de rachaduras, passa bastante coisa. Infelizmente ou não, é uma realidade que demora a ser percebida porque “ah, organizar a casa é rapidinho, eu mesma faço”, “limpar e cuidar é algo tão básico, deixa eu fazer aqui”, com a melhor das intenções, tomando um tempo precioso para meu desenvolvimento para priorizar um trabalho que TEM de ser conjunto (Fato curioso os homens desejarem a paternidade sem nunca pensarem no resto que tende a ser tudo).

Tomava as rédeas porque o outro não faz tão bem quanto eu, ou atrasa demais pra limpar algo ou simplesmente não faz. Cansa cobrar, exigir, conversar sobre algo que nunca chegaram em mim e pediram por isso. Pelo ao contrário, a limpeza e organização de tudo já era inerente a mim. Era como se a manutenção e sossego pertencessem a corpos diferentes.

Eu ainda me agarro ao meu “no passarán”. Ser a chata da cobrança vai me custar uma energia e discussões, mas não faz o cenário anterior ser o ideal. Não tem como ser ideal algo que só está bom para um, não dá.

Agora que percebo, através de muita terapia e autovigilância de meus comportamentos, o quanto nos colocamos em segundo lugar apenas pelo “não quero ser chata”. É um medo da solidão com ser julgada de louca. “Ah, lá vem a doida da limpeza”.

Falhei em ter achado que algumas mulheres não sabem lidar com a imaturidade dos homens, mas estamos cansadas, e nesse crime perfeito, a gente só faz. Nem sempre a conversa ajuda, e as barganhas mentais de “ah, é só uma louça pra lavar, faço rapidinho” viram mantras.

Se nada adianta, minha postura o fará. Se a conversa não for suficiente, minhas ações a será. Sou a geração com mais acesso a informação, tecnologia e qualquer outra coisa de todas as mulheres que vieram antes de mim, e repetir os mesmos erros delas não me fará, necessariamente, fraca, mas perceber que eles existem e me fazem mal pode me dar um norte sobre quem quero ser e qual vida quero levar daqui pra frente.

Não é fácil, nunca será e a única coisa que tenho dentro de mim é o que sou durante todos esses anos. Se eu não valorizar isso, então não vale a pena despender tanta energia. Pra mim vale.

Até porque, quando o homem está sentado no sofá vendo Reels enquanto a gente se desdobra entre trabalho, roupa no varal, comida e crianças, ele não se importa em ajudar. Não que ele não saiba o valor de tudo aquilo, ele sabe, mas prefere agir como se a esposa fosse mãe. O menino de oito anos, que passava a tarde vendo TV Globinho, encontra o adulto do sofá e ambos pensam: “sou incapaz e preguiçoso demais para ajudar. Ela sabe o que faz, eu sou uma criança, se não, pediria minha ajuda”. A notícia é que a gente não se casa com o guri.

Meu tempo tem de ser priorizado para meu bem. Meu trabalho, meu descanso, meu prazer. Se as atividades domésticas tomam muito tempo, devem ser divididas, porque não é justo o homem ter o privilégio de passar o dia no sofá vendo Casimiro enquanto estou lavando louça E vendo Casimiro.

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Fernanda Nunes

na maioria das vezes, os textos vêm quando vou dormir