Resenha: Amanhã, Amanhã e ainda Outro Amanhã, de Gabrielle Zervin

Fernanda Nunes
5 min readMar 26, 2024

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Sempre que quero ler livro bom, vou no perfil do Chico Felitti no Instagram e busco por indicações. Ele quase nunca falha.

Nas recomendações de 2023, ele comentou sobre Amanhã, Amanhã e ainda outro Amanhã, da escritora americana Gabrielle Zervin, livro que nunca tinha ouvido falar. Chico explica brevemente a história: uma amizade entre dois desenvolvedores de games que produzem mundos virtuais. Não sei o que pode ter chamado a minha atenção neste livro, ainda que eu goste de videogames e me divirto com GTA V, Red Dead Redemption II, The Last of Us, não tenho certeza se chamaria a minha atenção ler sobre isso.

Mas não foi o caso de Amanhã 3X (vamos chamá-lo assim - até a autora chama - não tenho idade para escrever esse título gigante tantas vezes).

O começo do livro conta a história de Sadie e Sam, dois amigos que se conhecem num hospital. Sadie está lá para acompanhar a irmã, vítima de câncer e, para passar o tempo, vai jogar videogame com um paciente, o Sam. O motivo de ele estar internado a gente acaba descobrindo ao longo do livro, mas isso acaba sendo secundário diante da história que vai se formando.

Eles acabam terminando essa amizade repentinamente e se reencontram muito tempo depois, já adultos e quase formados. Comparado com todo o livro, o início pode ser um pouco mais arrastado. Mas assim costuma ser livros muito bons (ou não, tô falando da boca pra fora).

Bom, em resumo e sem spoilers, eles vão construindo realidades virtuais com base no que eles viveram e a história do livro vai ganhando corpo a partir de tudo isso. Poderia ser só mais uma história de nerds criando mundos, mas não. Gabrielle tem o dom da escrita. Novos personagens são introduzidos de forma muito sutil, dando sustentação para o enredo. Até o coadjuvante é protagonista (quem leu sabe do que tô falando).

Apesar de ter 400 páginas cravadas, terminei Amanhã 3X muito rápido. Como disse, Gabrielle tem o dom e contava os segundos para retomar minha leitura. Teve um domingo que deliberadamente acordei mais cedo para fazer meus rolês e ter tempo e disposição para mergulhar em Sadie e Sam. Isso mesmo, mergulhar (Quem leu também sabe do que eu tô falando).

Sadie e Sam viraram meus amigos, minha série favorita. "Hm, vamos ler aqui porque estou com saudades dos meus maninhos preferidos. Vamos ver o que eles vão fazer". Agora mesmo, escrevo essa resenha com o coração partido de saber que nunca mais os terei em minha mente criando memórias; mesmo se eu ler o livro novamente, não será igual. Sadie e Sam serão apenas mais um fruto de minha imaginação do qual nunca mais me surpreenderei lendo.

E tem o Marx.

Marx é um personagem fundamental para enlaçar esses encontros. Ele se apresenta no livro como colega de quarto do Sam (eles estudam em Harvard) e é como um faz-tudo. Apoia o amigo em várias decisões, organiza os projetos dos amigos, disponibiliza apartamento... um verdadeiro anjo. Achei-o, no começo, um mala, mas todas as intenções dele eram boas. Cada vez que lia, sentia que Marx era o apoio máximo de Sadie e Sam ao longo da história, e sem ele, não existiria absolutamente nada do que eles criaram. Marx me cativou em cada página e sentia que, em muitas vezes, eu deveria ser mais Marx: resoluto, simples, prático, amigo, honesto, gente boa.

Amanhã 3X me emocionou em tantos níveis que minha mente fica agitada em tentar organizar quais foram os destaques porque quase tudo mexeu comigo - tanto emocionalmente, claro, mas na forma leve, fechadinha, gostosa de escrever que a Gabrielle tem. Ela reacendeu em mim algumas vontades, entre elas, escrever mais, praticar mais algo que amo tanto e que sempre invento uma desculpa para não fazê-lo. Outra vontade que tive foi de jogar videogame e ficar horas por lá conhecendo mundos, me divertindo e tentando entender as razões pelo os quais os desenvolvedores fizeram x ou y.

Me irritei com Amanhã 3X também; Sadie me pareceu em alguns momentos como a Kambili Achike, a protagonista de Hibisco Roxo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Em vários momentos as duas pareciam iguais: ambas mimadas e indecisas, coisas que odeio. O incrível é ver a evolução das duas, tomando muita porrada (não no sentido literal, pelo amor) e se desenvolvendo meio que na marra. Sadie é mais turrona, mas igualmente encantadora.

Eu ainda tenho muito a dizer sobre esse livro, mas a saudade que ficou ainda permanecerá por um bom tempo aqui comigo. Já criei intimidade com os personagens, e queria dizer ao Sam que ele é um ser incrível, inteligentíssimo e que ao longo de todo o livro, foi contra ele mesmo várias vezes. Se diminuiu para caber na vida dos outros, e, apoiado e inspirado por Marx, soube ser generoso.

Sadie é "pra frente", mandona, séria, focada, outra ser humana dotada de muita inteligência. Os momentos de depressão profunda que ela passa são os mais tensos do livro porque tudo parecia uma incógnita - justamente como é com alguém depressivo. A desenvolvedora fica incomunicável, inacessível, respondona, insuportável, carente e mesmo as mensagens, ligações e visitas do Sam não são suficientes para ela melhorar. Tem um momento no livro que Sam diz tudo o que ele queria dizer a ela, e mesmo assim, ela não faz nada. Ele diz o que deveria ser dito e ela continua inerte, fraca. PORRA, SADIE! BOTA UM CROPPED E REAJA!

Ainda tem a conexão do Sam com a mãe, Anna Lee. Aliás, o livro conta com três Annas Lees e a conexão improvável entre elas deixa a história ainda mais forte.

Gabrielle Zevin escreve com o coração; sua prosa é bem amarrada, complexa e simples ao mesmo tempo. Cada palavra escorre emoção: tristeza, felicidade, animação, força, amizade.

Se pudesse resumir Amanhã 3X, seria: é um livro sobre amizade. Daquelas que você ama alguém somente por amar, sem pedir nada em troca. Amar por ajudar, por crescer com o outro. Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã me fez querer viver, resgatar meus sonhos bobos e estar cada vez mais perto de quem me ama. Só de relembrar a história, meus olhos ficam marejados porque, no fim, o livro é sobre jogos. Tudo o que disse acima é costurado com videogames - entre seus sucessos e fracassos - e que, na vida, só nessa simulação que vivemos, não tem como reiniciar, tentar novamente.

Quem leu a cena do Marx sobrevoando uma plantação de morango já entendeu tudo. (Aliás, para mim, ele sabia o que iria acontecer com ele uma hora ou outra. Ele só não queria que fosse com os amigos dele).

Gabrielle Zervin provavelmente nunca lerá esse texto. Mas preciso dizer o quanto ela transformou minha vida.
Obrigada por Marx, Sam e Sadie. Obrigada por Ichigo, Dead Sea, Counterpart High e tantos outros que não lembro mais.

"E o que é o amor, afinal? (...) Exceto o desejo irracional de deixar de lado a competitivdade evolutiva para facilitar a jornada de outra pessoa pela vida?".

"Durante a maior parte de sua vida, Sam tinha achado difícil dizer 'eu te amo’. (...) Mas agora parecia uma das coisas mais fáceis que Sam poderia fazer. Por que não contar a alguém que você o ama? Uma vez que se amava alguém deveria repetir até que a pessoa se cansasse de ouvir. Dizer até que deixasse de ter significado. Por que não? É claro que você deveria fazer isso".

"Sadia tinha se esforçado para ser excelente: a arte normalmente não era feita por pessoas felizes".

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Fernanda Nunes
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na maioria das vezes, os textos vêm quando vou dormir

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